segunda-feira, outubro 26, 2015

O estranho

Ia sempre ao mesmo estabelecimento mas não, não queria ser reconhecido. "Lá está ele" - "esteve aqui ontem"- imaginava todos pensando isso quando o viam, ser apontado pelo costume de frequentar o lugar era- lhe insuportável. Hoje, foi ao supermercado com um bigode falso, um sorriso emprestado e um olhar alheio. As vezes ia vestido de  centurião romano, apesar de achar que essa roupa chamava muito a atenção no século XXI.

Agora sim, um espião da guerra fria, gravata estreita, e ar de poucos amigos. Traje bom para comprar manteiga e brocolis.

Para carnes, usava o traje de Neanderthal que lhe caia bem, apesar dos problemas que teve com a policia ao fazer o fogo no chão do supermercado. Largou a prática, mas manteve o traje. O açougueiro o olhava desconfiado, mas não roubava no peso.

Nas frutas, imaginou usar algo militar, turco, quem sabe. Não deu certo, a polícia o deteve com meio kilo de manga, uma espada e uma lança tentando pegar o metrô de Londres.

Só tinha um amigo. Em vez de cabeça, seu amigo tinha em seu lugar uma abóbora, em lugar da língua, uma folha de carvalho pendia-lhe da boca, em vez de olhos, tinha apenas dois buracos redondos, e através dos buracos chamejavam dois tocos de velas.

No dia que ventou muito, as velas se apagaram. Agora jaz aqui, a dormir sob o viaduto da própia imaginação. Escuta músicas nunca feitas, conversa com gente inexistente e faz arte.

Enfim, o amor é o ar do espírito.

In memoria Robert Walser

2 comentários:

CB disse...

Fantastico, lembrou-me Fernando Pessoa "Para viajar, basta existir"

art disse...

isso mesmo.

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