sábado, outubro 04, 2014

Ressaca, Luiz Fernando Verissímo

"Hoje, existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes ressacas. As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você as tomava sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. Além de saúde era preciso coragem. As novas gerações não conhecem ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores. A ressaca era a prova de que a retribuição divina existe e que nenhum prazer ficará sem castigo. Cada porre era um desafio ao céu e às suas feras. E elas vinham: Náusea, Azia, Dor de Cabeça, Dúvidas Existenciais - as golfadas. Hoje, as bebedeiras não têm a mesma grandeza. São inconseqüentes, literalmente. Não é que eu fosse um bêbado, mas me lembro de todos os sábados de minha adolescência como uma luta desigual entre a cuba-libre e o meu instinto de autopreservação. A cuba-libre ganhava sempre. Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a tontura e o desejo de morte. Jurava que nunca mais ia beber, mas, antes dos trinta, "nunca mais" dura pouco. Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que parecia mesmo uma eternidade. Não sei o que a cuba-libre fez com meu organismo, mas até hoje quando vejo uma garrafa de rum os dedos do meu pé encolhem. Tentava-se de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um Alka-Seltzer e duas aspirinas antes de dormir. Mas no estado em que chegava nem sempre conseguia completar a operação. Às vezes dissolvia as aspirinas num copo de água, engolia o Alka-Seltzer e ia borbulhando para a cama, quando encontrava a cama. Mas os métodos variavam. Por exemplo: Um cálice de azeite antes de começar a beber - O estômago se revoltava, você ficava doente e desistia de beber. Tomar um copo de água entre cada copo de bebida - O difícil era manter a regularidade. A certa altura, você começava a misturar a água com a bebida, e em proporções cada vez menores. Depois, passava a pedir um copo de outra bebida entre cada copo de bebida. Suco de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta - Para ser tomado no dia seguinte, de jejum. Adicionando vodca ficava um bloody-mary, mas isto era para mais tarde um pouco. Sumo de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde dissolvidas em querosene - Misturava-se tudo num prato pirex forrado com velhos cartões do sabonete Eucalol. Embebia-se um algodão na testa e deitava-se com os pés na direção da ilha de Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias, no fim dos quais o tempo já teria curado a ressaca de qualquer maneira. Uma cerveja bem gelada na hora de acordar - Por alguma razão o método mais popular. Canja - Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada resolveria qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era para tomar. No entanto, muitos mergulhavam o rosto no prato e tinham de ser socorridos às pressas antes do afogamento. Minha experiência maior era com a cuba-libre, mas conheço outros tipos de ressaca, pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês que tomara na noite anterior era paraguaio quando acordava se sentindo como uma harpa guarani. Quando a bebedeira com uísque falsificado era muito grande, você acordava se sentindo como uma harpa guarani e no depósito de instrumentos da boate Catito's em Assunção. A pior ressaca era de gim. Na manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo tempo. Abria um e quando abria o outro, o primeiro se fechava. Ficava com o ouvido tão aguçado que ouvia até os sinos da catedral de São Pedro, em Roma. Ressaca de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para o chão como óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava correndo no quarto, escorregava em você e deslocava a bacia. Ressaca de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até a cozinha, tentava alcançar a garrafa de água e puxava todo o conteúdo da geladeira em cima de você. Era descoberto na manhã seguinte imobilizado por hortigranjeiros e laticínios e mastigando um chuchu para alcançar a umidade. Era deserdado na hora. Ressaca de cachaça. Você acordava sem saber como, de pé num canto do quarto. Levava meia hora para chegar até a cama porque se esquecera como se caminhava: era pé ante pé ou mão ante mão? Quando conseguia se deitar, tinha a sensação que deixara as duas orelhas e uma clavícula no canto. Olhava para cima e via que aquela mancha com uma forma vagamente humana no teto finalmente se definira. Era o Peter Pan e estava piscando para você. Ressaca de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira permite a eutanásia. Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas, quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro. Hoje não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece nada. No dia seguinte estão saudáveis, bem-dispostas e fazem até piadas a respeito. De vez em quando alguns dos nossos se encontram e se saúdam em silêncio. Somos como veteranos de velhas guerras lembrando os companheiros caídos e o nosso heroísmo anônimo. Estivemos no inferno e voltamos, inteiros. Um brinde. E um Engov." Para não expor ninguém, não colocarei nomes. O post é teu, dito de antemão...Confesso que assustei-me com a história da cama balançando.Pensei que era algo como "O Exorcista" , aonde a cama da Reagan também balança e ela escuta vozes(temi perguntar isso, sobre as vozes e ouvir um "siiiim", vai que eram os primeiros sinais da possessão?).Ainda vou te ver bêbada, já cansei de te ver de ressaca.Nesse dia vou rir muito. Te adoro.

5 comentários:

Anônimo disse...

Faltou a pior. A ressaca de bebida tomada às escondidas, na pressa, engolida como comprimido. Ressaca de menino que sonha em ser homem, e tem que tomar o que quer que seja, gaguejo só de lembrar, escondido e ligeiro. O licor de clara de ovos não era comum na Bahia, mas licor de laranja, de jabuticaba e o mais famoso deles, o de jenipapo, tinham em abundancia como produto de fabricação caseira para as festas do São João. Então nesta questão os nordestinos aprendiam mais que os gaúchos, maior variedade e muita disponibilidade para achar o produto nas casas que faziam fogueira durante o São João. Era só caminhar umas duas ruas proferindo a senha “São João passou por aqui?”, e você ia parar no lugar onde não ia encontrar o Santo. Isto é, no inferno....
Outra fonte geradora de problemas psicológicos perpendiculares e inoxidáveis eram os casamentos. Como sempre, veja o post anterior, eram oportunidades únicas. Garçom de um casamento geralmente não tem outro casamento na mesma casa, em data próxima o suficiente para a família lembrar que ele fez farta distribuição de bebidas aos meninos. Sempre começava com o drinque oficial. Um copo com pouquíssimo uísque e muito gelo e guaraná. Parecia que tinha virado gente. Daí pra frente era interceptar o garçom com a bandeja com o que restava de bebida nos copos. Todos pareciam água, mas uns com gosto de uísque, outros de Martini, outros de caipirinha, batida e também cerveja. E o resultado era a camisa social vomitada em dia de casamento e no dia seguinte o futuro. A ressaca e os problemas complexos.
anonimo duda

Luladasequacao disse...

Excelente, descreve a maior parte da minha vida passada.

Porem, faltou um muito importante, talvez a pior. Ressaca psicologica. Voce acorda com os sintomas fisicos acima, mas com alguem alegre e acordado junto de voce. "Alguem" diz, "mas voce... se lembra do que fez ontem?." Sua memoria se lembra ate meia noite, mas tambem que foi dormir as 4 da manha!!

A sorte de "alguem" e sua e que bebado voce nao dorme com revolver!!!

Lula(dasequacao)

Bel B disse...

Já passei por várias experiências traumáticas. Minha ressaca era curada com leite. Depois de algumas vezes nem precisava mais tomar o leite, bastava olhar para o copo cheio.
Mas com certeza a pior é a ressaca moral ou ressaca psicológica como Lula chamou. Já passei por isto também.

Anônimo disse...

Pior é quando você pega uma mulher feia durante a bebedeira.

O provocador

Marcelo/Leri disse...

Fora o licor de clara de ovos, já passei por todas. Faltou lembrar o tal do QUENTÃO: por causa dele não como comida com gengibre até hoje.

Casamento de Amelinha e Arlindo - 1947

Casamento de Amelinha e Arlindo 1 - Maria Rosa Andrade 2 - Nicácia Andrade 3 - Amelinha Barreto 4 - Arlindo Martins 5 - Cecília Martins 6 - ...