segunda-feira, fevereiro 15, 2016

A vida venturosa de Matilda

Ouvindo a vida de tia Matilda, efêmera, ouvindo, ouvindo pelo telefone, e ela falando sem parar para respirar, de um só fôlego, passageira, é como se eu estivesse diante de um enigma e de um espelho. Estou me vendo fora do corpo. E penso que é justo o que não devo nunca ser.



Quando ouço como quem aprende, percebo que são desejos e mais desejos e ações devastadoras, impulsivas e impossíveis, como vários tratores pesados em movimento. Com tetos desabando, terras caindo, árvores arrancadas, caçambas de pedras, asfalto quente, fumegante. Com direito a um barulho peculiar. É uma fúria da natureza.

A época que Matilda passou melhor foi quando esteve na solidão de sua casa e não dava notícias. Passava o tempo fazendo coisinhas simples e rotineiras e repetitivas. Como limpar a casa diversas vezes, lavar a roupa, fazer a comida. Tudo pouco, tudo simples, sem grandes nem loucos artefatos, nem parafernálias, coisas tão comuns em sua vida acelerada em Iguaí. Sem as duas cozinhas que fez realizar em sua casa no interior da Bahia. Funcionava assim: uma cozinha para visitação, bem decorada como numa foto de revista, e a outra para usar, com três fogões: um de ferro, bonito, pintado de azul, esmaltado, um de tijolo com forno e um a gás, moderno. Salivava com os fogões.

Também nessa época, ela estava sem as imensas assadeiras de pizza, receita italiana de Nasa, sem as diversas e variadas formas para bolos. Bolo xadrez para o café da manhã, colorido, bolo Zizinha, bolo inglês para o lanche da tarde, bolo formigueiro, bolo de coração, de estrela, cacho de uva e mais: sequilhos, avoadores, biscoitos de nata, bem-casados, biscoito engorda marido, variados. As latas grandes de 20 kg que vinham com as balas Confiança eram cheias até a boca com essas  iguarias.

Ela tinha os dias certos na semana reservados para esse ofício: fazer biscoito, modelar a massa, assar no forno quente, brando, banho–maria e as fazendeiras ajudantes sub judice ao seu comando. E saiam de suas mãos treinadas: estrelinhas, luas, casadinhos, coco com nata, salgadinhos, cebolinhas. Todos eram distribuídos com a vizinhança, inclusive com os parentes do ex-namorado que eram estimados.
Existia na sala de jantar, um móvel buffet muito bonito, com uma fileira de doces de compota com as receitas vindas, através da família do marido, de Rio de Contas e Mucugê. Verdadeiras especiarias.

Nesta época de minha visita já não existiam mais os cincos vestidos de crochê que encomendou de uma só vez, para a filha, porque não conseguiu se decidir qual a cor mais bonita.

Mais vale relembrar dos inúmeros conjuntos de argolas, brincos, correntes , medalhinhas .Tudo de ouro maciço, 18 quilates, que comprava sistematicamente do ourives Sr.José do Ouro, famoso na região, viajante, com sua maleta de couro marrom bem cuidada, lustrada e que tinha pouso certo na casa de Matilda. Ele tinha uma cara ótima, educadíssimo, sujeito jeitoso e então ela comprava todas as novidades, não para ela, mas para presentear as primas, as filhas das primas, as sobrinhas, as amigas de Iguaí, as parentas Benjamin, as descendentes Andrades, as filhas dos médicos de Vitória da Conquista. Todos eram devidamente contemplados.

Mas o mais criativo dela eram seus vestidos com bolsos, muitos bolsos, aparentes e embutidos, e os sapatos mais folgados que os pés para serem entupidos de dinheiro escondido que roubava de si mesma, de sua loja, sorrateira, vitoriosa, com ares de quem estava fazendo uma grande coisa! Afinal era preciso transgredir.

Outro detalhe importante: Matilda era uma romântica apaixonada, incorrigível, por um amor simbólico que se perdeu pelos caminhos, irrealizável. Enquanto arrumava a casa com sofreguidão ou dirigia o carro pela cidade sem rumo certo ou pelas estradas do interior, soltava a voz cantando Cauby Peixoto...o amor é uma pérola... Negue o seu amor... Saudade palavra triste... Risque o meu nome... Perfídia e todo Roberto Carlos.

Sua liberdade não tinha preço. Não há registro de que tenha obedecido a alguém uma única vez. Nutria um amor especial pelos homossexuais para espanto dos desavisados. Acolheu-os em sua casa mesmo causando escândalo para muitos da família.
Numa fase da vida, levemente depressiva, estava dócil e meiga. Confortável. Foi a única vez que a alcancei de verdade. Mansa, sem o frêmito de asas se debatendo, sem as dissonantes cornetas desafinadas, sem o espocar de bombas que sempre acompanharam sua lendária, aureolada e sufocante presença.
Os mais velhos a adjetivavam com ironias. Diziam que era extravagante, descontrolada e gastadeira. Gastava tudo que chegava às suas mãos. Mas os mais jovens a amavam. Amavam nela tanta juventude, descontração, dinamismo e sobretudo a alegria.

Doou tudo o que teve. Tinha uma necessidade enorme de ajudar a todos. Uma verdadeira obsessão que foi hegemônica em sua vida. Através de encontros e mais encontros, portas abertas, conferências e acordos. E lá vão comidas e mais comidas, roupas, dinheiro, tempo, preocupação.
Em casa, como era uma excelente dona–de-casa e por incrível que pareça mãe dedicada, uma mãe vaca brava, aconteciam verdadeiras operações de guerra. Três horas da manhã, tudo escuro, todos dormem e ela se levantando apressada, lavando e esfregando a cozinha, a louça, fazendo café, sem deixar uma única gota d`água cair no chão, preparando os sanduíches, suando, vermelha e gorda. Correndo, correndo, animada, porque às 5 horas teria que estar na rodoviária para buscar uma das  inúmeras primas que mora no interior para fazer  exame. E haja exames, especialistas, levar e buscar, levar de novo. Sempre. Quantas vezes fosse necessário. Todas as vezes, incansável, por anos a fio. Nunca vi buscar e embarcar mais gente na rodoviária.


         

Era uma exímia motorista e numa época que as mulheres viviam dentro de casa, ela amava a rua. E declarava isso. Dizia que adorava correr trecho. Se oferecia para dar carona a qualquer um: quanto mais longe melhor. Alegre e divertida.
O trabalho da casa era árduo, casa sempre cheia, guerra é guerra, o inimigo é invisível. Não importa, mas tem que lutar, enxaguar a roupa em 5 águas, 3 sabões, passar 7 vezes o pano na casa de cada vez, 3 vezes ao dia.
Esfregava tanto os banheiros que desfazia os rejuntamentos e estavam sempre precisando de reparos.  Quando qualquer um saía do banheiro, ela entrava com água sanitária, pano e desinfetante. A luta é árdua e contínua. A vida não para. Tem micróbios e bactérias por toda parte.

Quando qualquer visitante, com sapatos limpos, a qualquer hora do dia ou da noite, se despedia para ir embora, começava a operação limpeza. E dizia, sorrindo e bem- humorada: esse cara vai deixar sujeira em minha casa.
  
Na hora de passar e guardar, as roupas, as toalhas e lençóis, só poderiam ter um determinado número de dobraduras. Organizadas por cores. As camisas engomadas, sem uma dobra, abotoadas, lineares. Toda semana arrumação geral, generalíssima. Fazia gosto contemplar os guarda-roupas de Matilda, verdadeiras obras de arte.


E os copos?
Num único sentido. Brilhantes, translúcidos.


Tomava no mínimo 3 banhos por dia e trocava de calcinha diversas vezes. Trabalhou tanto com produtos de limpeza, produtos fortes como Qboa, cloro ativo, varsol, que perdeu o olfato.
O mais importante de tudo é que teve uma vida abundante. Deixou rastros, passos firmes e determinados e alegria contagiante. Era estupenda.
  
Claro que você  precisava de uma proteção especial para conviver com ela, de preferência uma armadura de ferro estilo medieval dos pés a cabeça e se possível blindada.

Matilda ajudou tanto a tantos que nem se lembram dela. No final da vida sozinha, meio dilacerada, já não podia fazer nada.

Penso que tanta ajuda foi uma ironia, era um pedido de  SOCORRO.

 Ana Tereza Sousa Matos

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A autora pede para esclarecer que este texto faz parte de um projeto maior; um livro infanto juvenil que está a escrever. 

2 comentários:

Anete disse...

Nossas Matildas, tia Noe, Anamira, não sei aonde arranjam tanta energia. Fico observando e realmente não sei ser assim, minha vida é de uma extrema calmaria.

Bel B disse...

Os textos de Ana Teresa são ótimos, comoventes como foi o de Nicácia e este agora que claro, trata-se de Lau. Ela sobrinha de Lau e muito mais próxima, cita algumas características que eu desconhecia, por exemplo, mania de limpeza.

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